Artigo de: Felipe Moreira, Instituto Pólis

Este artigo traz uma reflexão sobre a atividade realizada pelo Instituto Pólis no Fórum Social Mundial de 2018. A atividade denominada “(Des) caminhos do Direito à Cidade” consistiu na aplicação do jogo “Desigualdade na Cidade ” e em uma roda de conversa.

Este jogo aconteceu em dois espaços públicos, a Praça das Artes da Universidade Federal da Bahia (14/03), e o Terreiro de Jesus, no centro histórico de Salvador (15/03). Ele compõe uma das metodologias participativas que o Instituto vem desenvolvendo com o objetivo de promover o debate, a reflexão e a atualização do entendimento sobre o “Direito à Cidade” a partir das pessoas que a vivenciam em seu cotidiano.

Direito à Cidade: uma reflexão coletiva

O jogo ‘ Desigualdade na Cidade ’ é, antes de mais nada, uma intervenção que promove uma reflexão coletiva sobre o Direito à Cidade tanto nos ‘jogador@s’ que participam diretamente da intervenção, como também em todos aquel@s que estão assistindo.

A metodologia consiste em desenharmos (fisicamente ou não) um tabuleiro de linhas paralelas em que cada linha representa uma resposta às 28 perguntas sobre Direito à Cidade. Cada participante deve responder às perguntas através do caminhar, isto é, deve andar para frente, para trás ou mesmo ficar parad@ para indicar a sua resposta.

As perguntas foram estruturadas a partir de três dimensões: ‘Cidade Justa e Sustentável’, ‘Cidade Democrática’ e ‘Cidade Plural e Acolhedora’. A primeira, aborda os aspectos materiais do Direito à Cidade, como, por exemplo: acesso às infraestruturas, serviços etc. A segunda foca nas possibilidades de participação e de representação política, seja pelo direito à manifestação ou pela capacidade de incidência política. Por fim, a terceira tem caráter mais simbólico e de pertencimento, isto é, do quanto as pessoas de diferentes gêneros, raças, identidades sexuais e outras variantes sentem-se pertencentes ou não à cidade em que vivem.

Após cada pergunta, trazemos dados que dão um panorama nacional e que permite aos participantes uma reflexão crítica a respeito de sua posição em relação à média do país.

Ao final do jogo, aquel@s que avançaram mais linhas são @s que estão mais próximos ao pleno acesso ao direito à cidade, e @s que estão mais atrás, aquel@s que têm mais direitos cerceados ou violados. Em um país onde o racismo e machismo são elementos estruturantes, não é de se espantar que, em todas as vezes em que aplicamos o jogo, homens brancos ficaram à frente e mulheres negras ficaram nas últimas linhas.

Então, se o resultado final já é em alguma medida esperado, qual é a contribuição que o jogo trás para o debate? Nós já o aplicamos em diversos contextos diferentes e sempre ele possibilita, a partir da vivência de cada participante, uma reflexão crítica e coletiva sobre os seus privilégios e os cerceamentos do direito à cidade. Esta reflexão é fomentada pelo espaço de debate que é aberto logo após o encerramento do jogo e traz, a cada rodada, novos olhares e perspectivas sobre o tema. Os participantes são sempre sensibilizados de maneira inovadora na medida que são expostos com o próprio corpo, andando no tabuleiro do jogo, a sua verdadeira experiência sobre sua existência na cidade.

No âmbito do Fórum Social Mundial (FSM) que aconteceu em Salvador em março de 2018, foram realizadas 3 (três) rodadas do jogo, todas em espaços públicos para possibilitar o diálogo com uma gama mais diversificada de atores e, em última instância, com a própria cidade.

Duas rodadas aconteceram no dia 14 de março num dos principais pontos de concentração do evento, a Praça da Artes, do campus de Ondina da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A outra, no dia 15, aconteceu na praça conhecida como Terreiro de Jesus, no centro histórico de Salvador, local de inúmeras e históricas disputas pelo território com a presença de movimentos de resistência a expulsão das famílias de baixa renda do centro histórico.

O Fórum Social Mundial e novos olhares sobre o Direito à Cidade

A realização das atividades na Praça das Artes permitiu a participação diversificada de pessoas, seja de forma direta, como jogador@s (aproximadamente 100 pessoas), seja de forma indireta como ouvinte/observador@s da atividade (cerca de 60 pessoas). Esta diversidade não se deu em termos de nacionalidade (havia apenas 1 estrangeira), mas em termos territoriais (sobretudo do norte e nordeste brasileiro), de renda, sexo, raça e de orientação sexual.

A atividade no Terreiro de Jesus esteve associada a outras coordenadas pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e pela Plataforma Global pelo Direito à Cidade e contou com a participação do Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB). Assim, houve um maior número de participantes soteropolitanos e que tinham a pauta pelo direito à moradia e pela área central como um eixo fundamental de discussão.

Foi interessante notar como, sobretudo nas rodadas do jogo realizadas na Praça das Artes, houve certo alinhamento entre os participantes durante as perguntas da primeira dimensão ‘Cidades Justas e Sustentáveis’, todos andaram mais ou menos juntos. À medida em que íamos para a segunda dimensão, ‘Cidade Democrática’, os homens avançaram mais enquanto as mulheres, sobretudo as negras, ou recuaram, ou não se moveram.

Conforme avançamos para a terceira dimensão ‘Cidade Plural e Acolhedora’, soma-se aos aspectos de classe, gênero e raça, a orientação sexual e a identidade de gênero o que, muitas vezes, acabou aproximando (mas não alinhando) mulheres cis, héterossexuais e mulheres negras, de homens cis, homossexuais brancos, por exemplo.

Mas, se num primeiro momento é o corpo de cada jogador@ que, pela suas características físicas e pelo caminhar do tabuleiro, contam uma história, é na roda de debate com @s jogador@s e demais presentes que as reflexões ganham profundidade e novos contornos, por vezes mais complexos. A trajetória individual, os interesses e reflexões de cada pessoa despertadas pelo jogo contribui com outros olhares para além daqueles contemplados pelas perguntas do jogo.

A pauta do Direito à Cidade relacionado à saúde mental, por exemplo, foi trazido por uma estudante de psicologia. Uma estudante sul matogrossense, ao ouvir os relatos dos demais participantes, entendeu que o jogo revela como os diferentes corpos são violados nas cidades brasileiras e questionou: “a quem interessa o Direito à Cidade?”. Uma artista de rua trouxe os desafios que a cidade impõe a quem quer trabalhar artisticamente com ela, seja pela fiscalização, por políticas higienistas ou violência policial.

Uma jovem negra de 17 anos do subúrbio de uma cidade Paraense, ao perceber que os demais jogadores caminhavam para frente enquanto ela permanecia parada ou regredindo, trouxe uma reflexão sobre como, através do jogo, ela se percebeu numa condição mais periférica do que imaginava.

Os integrantes do MSTB e de outros movimentos de moradia da área central de Salvador destacaram as lutas por permanência nas áreas centrais, a violência da Polícia Militar, sobretudo com jovens negras e negros, as ameaças de remoções e de violações do corpo.

Este debate entre diferentes agentes, com diferentes vivências e trajetórias traz complexidades para a reflexão coletiva sobre o Direito à Cidade e amplia seus recortes e as perspectivas de luta. Seja porque novos agentes foram sensibilizados e engajados a ela, seja porque o debate permitiu a reflexão sobre novos temas, abordagens e dilemas que poderiam ser incorporados pelo Direito à Cidade.